Cidades
Lei Paulo Gustavo fomenta cultura periférica e cinema independente no Nordeste
Cris e o marido perderam os empregos no início da pandemia de Covid-19 e a casa onde moravam com os três filhos, na periferia do Recife (PE), foi condenada por risco de desabamento. No mesmo período, ela descobriu a quarta gravidez, não planejada. Enquanto trabalhava como influenciadora digital, para conseguir arcar com a obra de uma nova casa, ela também iniciou uma peregrinação para fazer laqueadura pelo sistema público de saúde.
Essa é a história contada no filme Tijolo por Tijolo, um documentário em longa-metragem realizado com os recursos da Lei Paulo Gustavo (LPG) e que vem chamando atenção no circuito de festivais nacionais de cinema. Já na estreia, em junho de 2024, ganhou três prêmios: melhor direção, melhor montagem, e o prêmio da crítica da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), no Festival Internacional de Curitiba.
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“Filmamos durante dois anos, sem dinheiro. Na fase de finalização, foi muito importante poder acessar os recursos públicos, o filme só foi possível graças à LPG. Para a gente ter trilha original, fazer correção de cor e correção de som precisa de recursos. Nós fomos contemplados em um edital de finalização e por isso conseguimos pagar nossos colaboradores e concluir o filme da forma como a gente desejava”, explicou Victória Álvares, documentarista pernambucana que assina o roteiro, a direção e a produção do filme, ao lado de Quentin Delaroche.
Com outros quatro filmes no currículo, entre longas e curtas, Victória destaca que apesar de sempre trabalhar com pessoas parceiras, não se pode romantizar a produção de cinema independente.
“As pessoas que trabalham com cinema precisam ser remuneradas, é uma indústria que gera muitos recursos. A gente está fazendo rodar as engrenagens desse país. O nome do filme, Tijolo por Tijolo, é um evocativo do que acontece na vida da Cris, mas também é uma referência ao nosso modelo de produção. É uma luta muito grande fazer cinema independente, cinema autoral, não é cinema para grandes streamings. Estamos falando da realidade de um Brasil profundo, mostrando como as famílias das periferias são inventivas, tecnológicas e brilhantes, porque acham solução para o dia a dia diante de um cenário de muita escassez e, com criatividade, conseguem ir se reinventando”, afirmou.
Para a secretária dos Comitês de Cultura do Ministério da Cultura (MinC), Roberta Martins, os resultados da LPG demonstram como as políticas públicas são fundamentais para o reconhecimento das culturas populares e periféricas.
“Os temas locais refletem a identidade e a vivência do povo. O fomento público desempenha um papel crucial nesse processo, garantindo espaço para que toda essa riqueza cultural seja amplificada e alcance cada vez mais lugares, além de incentivar os fazedores de cultura da região a continuarem produzindo”, concluiu.
LPG no Nordeste
O MinC repassou R$ 1,1 bilhão em recursos para estados e municípios do Nordeste por meio da LPG. Desse total, 84% já foram executados, ou seja, mais de R$ 965 milhões chegaram às mãos dos agentes culturais, movimentando a cadeia produtiva local.
Em Pernambuco, estado onde Victória foi contemplada para finalizar Tijolo por Tijolo, o índice de execução é o segundo maior da região: 92% dos R$ 13 milhões repassados pelo Governo Federal ao estado já foram gastos.
A Paraíba lidera o ranking de execução no Nordeste – já utilizou 93% dos R$ 88,4 milhões que recebeu por meio da LPG.
“A execução da Lei Paulo Gustavo na Paraíba demonstra compromisso e eficácia dos gestores, gestoras, fazedores e fazedoras de cultura no nosso estado, além de um trabalho de monitoramento e acompanhamento do Escritório do MinC na Paraíba. O resultado é uma rica diversidade cultural e artística, com projetos que beneficiam e expressam nossa identidade”, destacou Rejane Nóbrega, coordenadora do Escritório Estadual do MinC na Paraíba.
Diversidade
Alagoas recebeu R$ 75,6 milhões da LPG e 86% dos recursos já foram utilizados. Parte deles foi usado para fomentar o Ateliê Xica Manicongo de Cinema, coordenado pela trabalhadora do audiovisual, Marina Bonifácio. Ela criou o projeto para realizar oficinas de formação para pessoas trans e travestis que, assim como ela, estão na indústria do cinema.
Foi com os recursos da LPG que o Ateliê realizou, este ano, a segunda edição em Maceió (AL), promovendo rodas de conversa com profissionais do cinema, castings para filmes, e exibição de produções audiovisuais realizadas por pessoas trans do estado.
Marina trabalha com cinema desde os 18 anos e foi nessa idade que começou a concorrer em editais. Seis anos depois, aos 24, foi contemplada pela primeira vez com uma política de fomento. Ela avalia que está mais madura profissionalmente e aprendeu muito ao longo do processo. Agora, além de promover o próprio projeto, foi chamada para participar da produção de um filme que também vai ser realizado graças aos recursos da Lei Paulo Gustavo.
“Por meio desses projetos, a gente está construindo um cenário onde pessoas trans estão trabalhando com cinema em Alagoas. No Ateliê, as alunas acabam sendo chamadas para participar em diversas produções e agora sentem que existe uma demanda. Maceió está num cenário muito interessante da comunidade trans e os editais da LPG fazem parte disso. Essa movimentação gera uma vontade nas pessoas de participar, e incentiva, nessas pessoas, o desejo de estarem em outros lugares”, avaliou.
Rap no interior
Não é só nas capitais que a LPG está movimentando a economia criativa do Nordeste. Municípios do interior também aderiram à política, lançaram editais e estão distribuindo os recursos por meio de fomento, premiação e bolsas que fortalecem a cultura local. Ainda em Alagoas, a cidade de São Miguel dos Campos recebeu R$ 566,8 mil da LPG e já gastou 90% do dinheiro.
Entre os 52 mil habitantes do município está Sandro Alvez, conhecido como Samoney Rapper, morador da periferia da cidade. Ele é cantor, compositor e idealizador do projeto Rap em Ênfase, que ocupa espaços públicos promovendo música autoral, batalha de rima, roda de conversa e ações sociais em áreas periféricas da cidade. Pela primeira vez, foi contemplado em um edital e recebeu fomento da LPG.
Em março de 2024, o Rap em Ênfase ocupou o palco principal da Feira da Ponte, evento tradicional do município, com mais de 190 anos de tradição, prestigiado por moradores de outras cidades de Alagoas e também de outros estados do Nordeste.
“Com a LPG eu consegui expandir o projeto. Para mim, é importante demais a gente ter voz e conseguir chegar aos órgãos públicos. Com o projeto, a periferia conseguiu ter um pouco mais de voz, além de unir mais pessoas. Depois da nossa apresentação na Feira da Ponte, o Rap em Ênfase já repercutiu em outros municípios, aumentou a nossa visibilidade, e a gente pensa em expandir ainda mais”, afirmou Samoney.
O rapper acredita que com mais informações sobre as políticas públicas de cultura disponíveis e orientação sobre como os agentes culturais podem participar, os projetos serão cada vez mais bem executados.
Outro exemplo de projeto que cresceu e ganhou mais possibilidades depois de ser contemplado pela LPG é a Tralhoto Mostra de Vídeo. Idealizado e executado pelo coletivo Meteorango, promove exibição gratuita de filmes ao ar livre para democratizar o acesso ao cinema.
Em atividade desde 2015, é a primeira vez que o coletivo recebe aporte de recursos públicos. Com o dinheiro da Lei Paulo Gustavo, foi possível realizar a segunda edição da mostra municipal na cidade de Alcântara (MA).
“A Tralhoto é uma uma mostra pensada para que as pessoas de Alcântara produzam cinema. Para que quem faz filme amador e não consegue levar para mostras competitivas tenha um lugar de exibição. A ideia é possibilitar que o filme feito na cidade seja visto pelas pessoas da cidade, e incentivá-las a contarem as histórias que acontecem aqui”, explicou Raissa Souza, uma das integrantes do coletivo Meteorango.
Satisfeitos com o resultado da mostra, que foi realizada em novembro de 2024, o coletivo já pensa em participar de mais editais para promover a terceira edição, e pretende levar as sessões de cinema ao ar livre para outras cidades do Maranhão.
“Quando apareceu a Lei Paulo Gustavo, caiu como uma luva para gente. Era tudo que a gente estava precisando. E teve um retorno muito legal, a gente viu que as pessoas compareceram”, afirmou Raissa.
O MinC repassou R$ 146,4 milhões via LPG para o estado do Maranhão e municípios maranhenses que aderiram à política. Até agora, 50% desse dinheiro foi usado.
Reta final
O prazo final para que estados e municípios que receberam recursos da LPG executem os valores termina no dia 31 de dezembro de 2024. O dinheiro precisa sair dos cofres dos governos estaduais e prefeituras e chegar à cadeia produtiva por meio de editais, contratações na operacionalização e serviços, dentre outras possibilidades.
O MinC segue à disposição das gestoras e gestores públicos para tirar dúvidas nessa reta final. Na página oficial da LPG estão disponíveis modelos de editais que podem colaborar nesse processo.
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